16h11 - quinta, 02/06/2022
Pré-barbárie
António Martins Quaresma
1. Entre 1683 e 1685, correu no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Évora um processo em que foi arguido Manuel dos Santos, cristão-velho, de 24 anos de idade, marítimo de profissão, natural de Vila Nova de Milfontes. Acusação: blasfémia por ter duvidado da virgindade de Nossa Senhora e por ter faltado ao respeito aos santos. Delatora: Maria Fernandes, natural de Lagos, mas moradora em Milfontes. Recorde-se que a blasfémia era então um grave crime, que punha o blasfemo na mira da Inquisição.
Chegados os oficiais da Inquisição a Milfontes, logo convocaram testemunhas, que, no entanto, não confirmaram a substância da acusação, declarando, pelo contrário, que nunca haviam ouvido quaisquer afirmações ao arguido que o inculpassem. Os inquisidores, decerto acirrados pela denunciante e pelo pároco da freguesia, é que não ficaram satisfeitos e voltaram a interrogar as testemunhas; estas, naturalmente temendo ser envolvidas, alteraram o depoimento inicial, agora desfavorável ao pobre acusado.
Levado para a masmorra da Inquisição, em Évora, onde foi submetido a interrogatório com tortura, Manuel dos Santos acabou sentenciado a ser açoitado pelas ruas da cidade, em auto de fé, e a três anos de degredo nas galés, além de cárcere ao arbítrio dos inquisidores. Ele, entretanto, não saiu com vida das mãos da Inquisição: em 15 de maio de 1685 foi enviado, moribundo, para o hospital real da cidade, onde expirou sete dias depois, presumivelmente em consequência dos tratos sofridos durante os interrogatórios.
Este processo contém alguns dos principais ingredientes que geralmente observamos nestas situações: a denúncia, aparentemente de teor falso e por motivo de mesquinha vingança pessoal; a deserção dos conhecidos/amigos, face ao perigo de serem associados a um réu da Inquisição; a "cumplicidade" ativa e passiva da população, temerosa e influenciada pelos agentes eclesiais; enfim, um ambiente pleno de suspeição e controlo ideológico.
2. Uma das lendas negras correntes nos países protestantes sobre os ibéricos era a existência da Inquisição e dos seus métodos, entre os séculos XVI e XVIII. E, no entanto, como é mais fácil ver o argueiro no olho do outro do que a trave no próprio olho, em países como a Alemanha, a Suíça e a Inglaterra ocorreu então uma furiosa e impiedosa "caça às bruxas", que, sob a suspeição de bruxaria e feitiçaria e acusações de, por exemplo, terem "dançado com o demónio", levou milhares de pessoas, a maioria mulheres, à morte na fogueira. O medo, numa patética existência cheia de riscos e num universo religioso povoado de medos, conduzia à busca de "bodes expiatórios", que levava os povos a agirem insanamente.
A expressão "caça às bruxas" chegou aos nossos dias, com o sentido de "perseguição movida por preconceitos sociais ou políticos", sendo bem notória a que foi incentivada nos EUA pelo senador Joseph McCarthy, na década de 1950, no que ficou conhecido por "Macarthismo".
3. Gostamos de pensar que os tempos agora são outros e que a repetição destas histórias estão fora dos horizontes da humanidade, em particular da parte dela que vive em sociedades de abundância e com sistemas políticos estáveis e plurais. No entanto, a demonização do "outro", por simples diferença de opinião, ou de aspeto físico, ou de qualquer outra real ou imaginada diferença fundamental, pode ocorrer também nas sociedades abertas modernas. Mormente quando existe uma disseminada perceção de crise. A história da Europa está coberta de casos e mesmo nos dias que estão a correr existem perturbadores sinais disso, consubstanciados no "discurso de ódio" e em histerias coletivas fomentadas por cruzadas de manipulação do pensamento das gentes. Claro que, pelo menos literalmente, não vemos ainda "blasfemos" ou "feiticeiras" ardendo em fogueiras, mas este é o "caldo de cultura" que cria o clima propício à erosão da democracia e à emergência da barbárie.
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