16h09 - quinta, 30/06/2022
Síndrome do emplastro
António Martins Quaresma
1. "Figura pública", como é classificado na Wikipédia, o nacional e internacionalmente conhecido "Emplastro" é um adepto de futebol, natural do Norte do País, que ficou conhecido por se insinuar nos enquadramentos das emissões televisivas em directo, colocando-se atrás dos repórteres ou dos entrevistados. Acho que tem várias alcunhas, mas a que se lhe colou indelevelmente foi a de "Emplastro". Na realidade, trata-se de uma pessoa, a quem, sem ofensa, bem cabe a designação de "pobre diabo", mas cujo fascínio pelas câmaras televisivas o alcandorou a ícone popular.
É bom de ver que esta atracção por aparecer na pantalha televisiva faz parte do sonho de muito homem comum, como uma espécie de momento de glória, naquilo que talvez possamos designar por "síndrome de Emplastro". Ainda há poucos dias, quando alguns amigos procediam a um levantamento do património histórico construído, no interior do concelho de Odemira, e falavam com um simpático e prestável habitante local, ele rematava candidamente a conversa com a pergunta se a entrevista era para passar na SIC.
A utilização da TV como forma de informação e propaganda é hoje corrente, mormente no âmbito político e partidário. Ambicionam-se os "horários nobres" para se chegar a um número maior de espectadores. E há parlamentares cujas intervenções na Assembleia são mais destinadas à televisão que sabem estar a gravar imagens do que para os seus pares no hemiciclo, que é como quem diz fazem "espectáculo" e não a nobre e verdadeira política. Além disso, como observou o meu colega de rubrica, Fernando Almeida, na sua última crónica, os poderes, sobretudo o económico, detêm um controlo sobre os media que, mesmo sem qualquer aparelho de censura organizado, acaba por condicionar a comunicação e os jornalistas, por vezes de forma avassaladora. É, pelo menos parcialmente, o que se passa com o insólito ambiente diplomático-político gerado a propósito da guerra na Ucrânia expresso nos órgãos de comunicação mainstream.
2. A TV e os restantes media tradicionais sofrem, nos dias de hoje, uma certa concorrência por parte dos meios acoplados à Internet redes sociais, blogues, etc. num universo pautado pela liberdade de publicação. Houve mesmo quem achasse que, com a Net ("rede", em inglês), se atingia a possibilidade de uma democracia informativa plena, sem censura, nem pressões de qualquer ordem. De facto, os meios digitais têm potencialidades únicas no que respeita à troca e à divulgação de informação, inclusive nos planos cultural e científico, áreas em que possivelmente se encontra a sua maior virtude e utilidade.
Contudo, no dizer muito glosado de Umberto Eco, que chegou a ser acusado de sobranceria intelectual, estes meios permitiram a uma "legião de imbecis" (classificação, aliás, simpática para muitos destes internautas) a publicação de dislates, sem qualquer edição ética e profissional. Sendo certo que que a Internet é mais e melhor do que isso, ela tornou-se campo privilegiado de desinformação organizada, de bullying, de campanhas negras, da expressão de frustrações, de preconceitos e ódios vis, da manifestação da fauna dos novos "bufos", enfim do que de pior podemos encontrar numa sociedade em que existe, é verdade, democracia formal na organização do Estado, mas a comunidade no geral parece estar a sofrer de uma das periódicas crises "morais", aliás potenciada por "Facebooks" e semelhantes. A humanidade não é naturalmente melhor ou pior do que sempre foi, mas há épocas sombrias em que, no interior de quadros políticos favoráveis, irrompem as suas facetas mais negativas. Ou, parafraseando Mia Couto, "As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas a amadurecer no ódio da gente miúda" (em 'O Último Voo do Flamingo').
3. Os "emplastros" televisivos constituem, neste quadro, uma versão de ligeira perniciosidade, aliás geralmente ingénua, de instrumentalização dos media. O contexto é-lhes favorável, em especial aos mais astuciosos em levar a água ao seu moinho, que, convenhamos, constituem uma subespécie rara. Não são, porém, estes emplastros, que evidenciam falha na democracia ou nela causam desgaste. Mais nocivos, creio, são os emplastro-imbecis que proliferam na Net, mas que, apesar de tudo, são mais consequência do que causa.
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