17h09 - quinta, 02/05/2024
A Democracia
António Martins Quaresma
Agora que estamos a comemorar os cinquenta anos do 25 de Abril, data em que felizmente trocamos um regime político autoritário e retrógrado por uma democracia à maneira da Europa Ocidental, terá sentido pensar no que realmente é a democracia e se ela não poderá ser aperfeiçoada entre nós. Na verdade, aquele mês de abril foi o mais belo de que tenho memória, porque nos trouxe a paz, a liberdade e a liberdade de sonhar e de tentar fazer um mundo melhor. No entanto, muitos dos sonhos que todos sonhamos nessa primavera ainda estão por realizar.
Passámos a viver em democracia e quem viveu no outro tempo sabe que a democracia é o melhor sistema de governação que pode existir. No entanto, cinquenta anos depois aprendemos que isso só será verdade se existir esclarecimento nos povos, verdade e isenção na informação, e honestidade e prioridade ao bem comum nos dirigentes políticos. Se assim for, as pessoas sentirão que quem ocupa as cadeiras do poder é realmente seu representante e que todos, eleitores e eleitos, fazem parte de uma mesma comunidade unida no objetivo de conseguir as melhores condições de vida para todos. Mas se não for assim, a "democracia" não será muito mais que sistemas de controlo dos povos legitimados por atos eleitorais, porque a democracia a sério não pode ser só a possibilidade de exercer o direito de voto. Estou em crer que muita gente, se pensar bem, concordará comigo
Em muitos estados a que chamamos de "democracias", portanto onde se vota para escolher os dirigentes políticos, os eleitores atualmente sentem-se enganados porque as promessas eleitorais não correspondem às práticas dos governos depois de ganhas as eleições. Todos sabemos que mesmo aqui entre nós, os políticos em campanha eleitoral vão ao mercado e distribuem beijos e abraços, parecendo verdadeiramente irmanados com o povo a quem pedem os votos, mas depois das eleições muitos já lá não voltam e, pelo contrário, ficam-se pelos gabinetes e corredores dos palácios, longe dos problemas reais das pessoas que os elegeram. Se por sistema só se prometem maravilhas para enganar os eleitores, e essas promessas não são cumpridas, isso não é verdadeira democracia, mas antes uma forma de dominar o povo com base no logro e na desonestidade. Estou em crer que muita gente, se pensar bem, concordará comigo.
Se a informação que chega às pessoas é truncada, parcial ou manipulada, e mesmo sem a "censura prévia" formal de outros tempos, a informação não é isenta e objetiva, não podemos falar verdadeiramente de liberdade e democracia. E sabemos que por estes lados da Europa Ocidental cada vez mais os órgãos de comunicação social importantes (os que fazem na prática a opinião pública) estão nas mãos de empresas dos mesmos grupos económicos que por processos vários (escolha das notícias, promoção ou despedimento de jornalistas, escolha de comentadores, etc.) apresentam a mesma versão do mundo, muitas vezes bem diversa da verdadeira. Ora, se embora sem censura não temos acesso a uma informação isenta e imparcial, isso não pode ser considerada verdadeira democracia. Estou em crer que muita gente, se pensar bem, concordará comigo.
Sabemos que a igualdade perante a lei é um princípio basilar do sistema democrático que sonhamos, mas na verdade é ainda hoje mais um sonho que uma realidade. Todos sabemos que quem possa pagar a um dos escritórios de advogados influentes conseguirá certamente mais sucesso na justiça que os que não têm posses para o fazer. Muitos também pensam (possivelmente com razão) que há muita legislação "feita à medida" para poder ser contornada ou para servir interesses privados. Há também quem afirme (com fundamento) que por vezes os agentes da justiça não são isentos como deveriam e até conseguem interferir na política sem que para isso tenham sido eleitos. Se a justiça afinal não é bem igual par todos, e alguns, usando expedientes vários, conseguem escapar às malhas da lei ou condicionar a vida política de todos nós, isso também constitui uma falha rotunda de um regime democrático. Estou convicto que também neste caso muitos concordarão comigo.
Se num país em que há riqueza abundante,e muitos dos cidadãos que trabalham diariamente não conseguem ter os rendimentos mínimos que permitam uma vida digna, então algo também vai muito mal na democracia. Temos em Portugal dois milhões de pobres, a maioria dos quais trabalha todos os dias ou trabalhou toda a sua vida antes de envelhecer,e isso não é aceitável no mundo que sonhámos; há cada vez mais gente sem-abrigo a viver nas ruas; mais famílias que não podem mandar os filhos estudar longe de casa por falta de recursos; cada vez mais casais a adiar o início de vida em comum por não conseguir habitação compatível com os seus salários; cada vez mais redução da natalidade porque a vida não permite ter filhos; mantém-se a eterna sangria migratória do nosso povo; a classe média, símbolo do equilíbrio social e triunfo da liberdade e democracia, reduz-se cada vez mais
Imagino que muitos dos que trabalham diariamente e não conseguem pagar as contas do supermercado, os que têm pesadelos com a subida da renda de casa, os que não podem mandar os filhos estudar fora por não suportarem as despesas ou que os vêm sair para o estrangeiro para tentar uma vida decente, e muitos outros que sabem que são pobres num país cheio de riqueza, andam desiludidos com esta democracia. Por certo haverá muita gente a partilhar comigo esta opinião.
Pensando bem, a democracia talvez não deva ser vista como um bem por si mesmo, mas antes como um meio para atingir outros bens para toda a comunidade, como a habitação, a saúde, a educação, a segurança, a informação livre, um ambiente equilibrado, etc.. Não admira assim que vá surgindo o descontentamento e que muitos se sintam desiludidos, porque a democracia não pode ser apenas o direito de votar de quando em vez. Estas falhas da democracia são terra lavrada para os partidos populistas que se dizem antissistema. Possivelmente há muitos que concordarão comigo.
Por tudo isto sinto que o 25 de Abril foi um dia maravilhoso que abriu as portas ao progresso para o nosso povo, e que melhorou em muito a vida dos portugueses, mas que é ainda um projeto inacabado. Para o completar é ainda necessário caminhar muito para que todos os portugueses se sintam realmente parte de uma comunidade solidária dirigida por governos que efetivamente procurem proporcionar a máxima qualidade de vida aos seus cidadãos.
Mas a minha preocupação maior é que, longe deste caminho de aperfeiçoamento da democracia e aprofundamento da liberdade, sopram atualmente ventos adversos que nos empurram para o controlo da informação, para a restrição das liberdades e que ameaçam a paz. Quem viveu em tempos de opressão e da guerra sabe que nunca se deve pensar que a liberdade, a paz e a democracia são bens garantidos.
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