14h55 - quinta, 24/10/2024

Da traição ao 'lobbying'


Fernando Almeida
Entre nós, ao mesmo tempo que vão surgindo palavras novas, como "empoderamento" ou "resiliência" (muito na moda atualmente), também se vão deixando de usar muitas outras. Esse fenómeno, que é normal na evolução de qualquer língua, é igualmente evidência de mudanças na forma de ver o mundo, de influências de outras línguas e culturas e, afinal, da mudança dos tempos. Uma das palavras que parece ter desaparecido do vocabulário da nossa comunicação quotidiana, certamente sinal de uma mudança na perceção do mundo, foi a palavra "traidor" e mesmo a ideia genérica de "traição". Para os mais novos, que possivelmente não se habituaram ao uso do termo, posso dizer que se falava de "traidor" sempre que alguém prejudicava os "seus" em benefício de "outros", e mais frequentemente quando alguém, em benefício de estrangeiros, provocava dano aos portugueses. Dava-se repetidamente o exemplo dos três lusitanos traidores que mataram Viriato a mando de Roma (uns tais Audax, Ditalco e Minuro), e a traição era vista como algo de profundamente desprezível e repugnante, merecedor dos piores castigos. Pensava-se na época que, se somos rigorosos a penalizar quem prejudica um de nós, deveremos ser ainda mais rigorosos quando alguém nos prejudica a todos.
Mas o mundo mudou e parece que por cá o individualismo destronou o sentido de bem comum, o que terá sido em parte resposta ao "nacionalismo salazarista", mas por outro lado consequência da adoção dos padrões culturais de povos anglófonos. A "traição" aos portugueses, enquanto qualquer atividade que, para beneficiar um pequeno grupo (nacional ou estrangeiro) prejudica todo o povo português, deixou de ser classificada como tal e passou a ser aceite com tolerância pela comunidade, como se fosse uma coisa normal.
Há quem chame de "lobbying", termo que geralmente é definido como "a atividade de influência, ostensiva ou velada, por meio da qual um grupo organizado, por meio de um intermediário, busca interferir diretamente nas decisões do poder público, em especial do poder legislativo, em favor dos seus objetivos" (definição da Wikipédia), a algo que parece ter muitas semelhanças com aquilo a que antigamente se chamava "traição". No entanto, os defensores da legitimidade desta atividade de "lobbying" advogam que o interesse coletivo das sociedades é o somatório dos interesses individuais e que, assim, é legítimo que cada qual faça o que possa para assegurar os seus interesses, porque da satisfação dos interesses de cada um surgirá a satisfação dos interesses da comunidade.
O argumento é interessante, mas parece-me falacioso: se é verdade que os interesses dos povos podem ser entendidos como o somatório dos interesses das pessoas dessas sociedades, convém não omitir que nem todos os elementos do povo têm a mesma possibilidade de chegar aos corredores do poder e, portanto, fazer ouvir os seus anseios junto de quem decide. Portanto, quem mora num monte perdido do concelho de Odemira e nunca esteve sequer perto de um governante deste país, não tem a mesma capacidade de influenciar decisões que quem almoça com ministros regularmente. Por outro lado, quem tenha abundantes recursos económicos pode ser "generoso" para com os partidos e pessoas que ocupam as cadeiras do poder, coisa que a generalidade das pessoas não pode fazer. Por exemplo, a campanha eleitoral nos EUA custará por volta de 16 mil milhões de dólares, que são oferecidos por "generosos patrocinadores"… que evidentemente receberão, mais cedo ou mais tarde, a compensação desse "investimento". Mais grave é saber-se que nem o mais brilhante, puro e profético candidato ganha uma eleição sem os milhões com os quais se influencia os eleitores e sem a cobertura da comunicação social que pertence aos mesmos patrocinadores. Mas por cá sabemos que acontece mais ou menos o mesmo, com as empresas e particulares a fazerem doações aos partidos, mas sobretudo a compensarem os políticos com cargos e honrarias depois da sua saída de funções: uns arranjam um emprego de professor numa universidade dos EUA (patrocinado por alguém em Portugal), outros passam a receber grandes salários como "gestores não executivos" de muitas empresas, outros ainda recebem favores variados e inconfessáveis… Em qualquer dos casos, são atitudes que poderiam ser classificadas de corrupção (receber benefícios pessoais em troca de favores). Portanto, está bom de ver, quem vive com os poucos rendimentos do seu trabalho ou do seu negócio, não consegue influenciar as decisões dos poderes públicos como os que dirigem as grandes empresas onde gerem milhares de milhões.
Também me parece evidente que se os interesses do povo e do país são coincidentes com os interesses de um grupo económico, este não necessita de se esforçar para que os poderes públicos satisfaçam esses seus interesses: não será necessário convencer um governo a tomar medidas que defendam os interesses dos portugueses, porque é essa exatamente a sua obrigação. Pelo contrário, a atividade "lobista" só se torna necessária se os interesses do povo são diversos dos interesses dos grupos que a promovem. Dito de outra forma, só há "lobbying" para conseguir que o poder público não se oriente para a defesa do povo, mas antes das empresas ou grupos que o promovem. Possivelmente, é por isso que alguns consideram que no fundo o "lobbying" é a legitimação da corrupção e do tráfico de influências na política, e forma tornada moralmente aceitável de beneficiar alguns em prejuízo de todo o povo. Muitas vezes beneficiar estrangeiros em desfavor dos portugueses.
Antigamente havia um nome para isso, mas hoje já está em desuso.



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