17h04 - quinta, 24/02/2022

Paciência de chinês


Fernando Almeida
Parece que já Filipe II da Macedónia, no século IV a. C., teria usado a técnica de "dividir para reinar", mas por certo o fenómeno será muito mais antigo. Sabemos que Júlio Cesar usava mesmo a expressão "divide et impera" e tinha essa prática na conquista e domínio dos povos que esmagou impiedosamente e incluiu no império. Entre nós, essa tática de provocar a divisão dos adversários levou mesmo à traição de alguns lusitanos e à morte de Viriato, o que facilitou a conquista romana da Ibéria. Mais tarde, os mesmos romanos recrutaram legionários na península para engrossar as suas tropas e assim conseguir novas conquistas ou a submissão de povos nos três continentes. Todos os impérios da história têm usado este tipo de estratagemas, e de resto, se não o tivessem feito nunca teriam sido impérios. Foi assim no passado, mas assim continua a ser no presente, só que os impérios são outros, bem como as formas de domínio, as intrigas ou as manhas que levam à desunião dos povos que se pretendem dominar.
Com a queda do Império Britânico, a segunda metade do século XX trouxe-nos dois "impérios modernos", o soviético e o americano, que disputaram o mundo entre si. Depois da desagregação do bloco de leste, vivemos hoje um tempo em que a superpotência americana se tenta assenhorar do controlo total do planeta. Mas tal como o antigo Império Britânico ainda tenta mostrar as garras sempre que possível, também o Velho Império Russo, sobrevivente do tempo dos czares e da divisão e enfraquecimento da antiga União Soviética, não aceita ser tratado como país menor que recebe ordens do novo "senhor do planeta". É assim que a Rússia e a Ucrânia, antigos "irmãos" no passado, estão agora separados mais pela intriga semeada por estranhos, que por alguma incompatibilidade real entre os seus povos ou interesses: são hoje inimigos capazes de se matar mutuamente, atiçados pela propaganda ocidental e já pelas marcas dos conflitos recentes.
Se os jogos de poder do mundo se regem por objetivos estratégicos dos países, seguem também por vezes os interesses particulares dos seus dirigentes. Sabe-se, por exemplo, que o filho do atual presidente dos EUA, Hunter Biden, tem tido negócios na Ucrânia, negócios pouco claros, que até foram investigados pelo senado norte-americano. Talvez por isso, enquanto Donald Trump tentava uma coexistência tranquila com a Rússia, Joe Biden parece querer ressuscitar a guerra fria de má memória, e nada faz para promover uma relação pacífica e de cooperação com a Rússia…
Trump podia ser "tolo", como se dizia, mas tinha razão em algumas coisas. Uma delas é que há um claro "entendimento estratégico" entre os grupos políticos de poder e a comunicação social instalada, que afinal, ao contrário daquilo que nós gostaríamos, não é tão isenta e imparcial como devia. Nesta crise da Rússia/Ucrânia/Estados Unidos, jornalistas, comentadores e outros supostos "especialistas" e fazedores de opinião, têm omitido alguns assuntos que, se os atores fossem outros, seriam exaltados. Por exemplo, "esquecem-se" de dizer que o atual poder de Kiev resultou de um golpe de estado organizado ou apoiado pelo ocidente e que derrubou um poder democraticamente eleito. Diz-se mesmo que foram agentes dos serviços secretos da Lituânia (a cumprir ordens de outros serviços secretos que não se quiseram envolver diretamente) quem matou gente na Praça da Independência em 2014, mortes essas que foram atribuídas ao presidente pró-russo que tinha sido eleito e que acabou deposto. Evidentemente que mesmo que o poder eleito fosse tão mau como se dizia, bastaria esperar pelas eleições seguintes para que o povo, de forma democrática, o pudesse substituir. Mas não, não era claro que o povo mudasse a sua orientação de voto e, por isso, o ocidente apoiou o golpe de estado que, na prática, derrubou um presidente democraticamente eleito e o substituiu por golpistas leais aos EUA e demais países da sua Europa aliada.
Para as potências ocidentais, a democracia só é "sagrada" quando lhes é favorável, porque se os outros povos tiverem a ousadia de escolher algo que não convenha ao ocidente, então a democracia já não é particularmente importante. Não há muito tempo vimos, bem perto de nós, os países ricos da Europa, que batem com a mão no peito na defesa da "liberdade e da democracia", apoiarem vários golpes de estado sangrentos em que militares derrubaram regimes democraticamente eleitos, perseguiram os seus dirigentes e mataram centenas ou milhares de pessoas, como aconteceu no Egito ou na Argélia. Isto para não falar do papel dos países do Ocidente como o Reino Unido, os EUA ou a França na criação de campos de morte e caos, na Síria ou na Líbia. Como a mesma máquina que domina a política domina também a comunicação, arranja-se sempre uma boa justificação para as injustificáveis intromissões nas escolhas dos outros povos. E nós, gente comum, fingimos que acreditamos que, por exemplo, invadiram o Iraque para libertar os iraquianos e não para lhes roubar o petróleo… Fingimos, mas julgo eu, já ninguém acredita nessas historietas. Desta vez a coisa é na Europa e envolve a Rússia, e a Rússia é uma grande potência militar e nuclear, e nós temos mais receio.
Dominar a Ucrânia, país rico em recursos e de povo cheio de capacidades, pode ser uma "mina", tanto mais que com medo dos russos, os ucranianos tenderão a aceitar uma relação com o ocidente que noutro caso seria inaceitável. Por outro lado, levar a NATO até à Ucrânia significa mais cedo ou mais tarde instalar mísseis com armas nucleares apontadas para Moscovo, e isso é verdadeiramente encostar a Rússia "às cordas". Percebe-se que a Rússia reaja e justifica-se a sua preocupação, assim como a nossa. E, já agora, pergunto eu, haverá necessidade de acossar os russos dessa maneira? Ganharemos nós, cidadãos da Europa e do mundo, alguma coisa com isso? Mas este é o jogo dos impérios, mais guiado pela busca incessante e obcecada pelo domínio dos outros, que pelo bem-estar dos povos…
E com tudo isto, discretamente, um império muito mais antigo que qualquer de todos os outros, o chinês, com a sua sábia e proverbial paciência, vais crescendo. Por isso o seu presidente, Xi Jinping, mantém aquele sorriso, entre o complacente e o enigmático, à medida que vai vendo a China a crescer sempre mais que os seus rivais. Ele representa uma civilização antiga, conhece bem o poder do tempo, e não age com a leviandade e a imprudência dos guerreiros jovens...



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