16h19 - quarta, 05/04/2023
Fontainhas ou a ascensão dos tolos
António Martins Quaresma
"Para eles, você não passa
de um ateu. O que não é como
eles parece-lhes contra eles -
comentou amargamente Zenão."
Marguerite Yourcenar,
A Obra em Negro
Costumo ir de férias para Fontainhas, uma bela vila ribeirinha, de que aprecio o ar fresco e marítimo, característica que, nos últimos tempos, convenhamos, o crescimento em betão e alcatrão tem subvertido. Apesar disto e de outras recentes perdas ambientais e sociais continuo a frequentá-la.
Há já um bom par de anos, conheci A., natural da terra. Tivemos alguns desacordos, na forma de ver as coisas, mas posso dizer que somos bons amigos. Gosta de me contar as suas memórias de nativo e, eu e ele, detemo-nos, por vezes, em lucubrações em volta de assuntos um pouco mais complexos. Ultimamente, tenho-o visto algo desencantado. Dizia-me, há dias: "Já publiquei alguns milhares de páginas sobre temas locais e regionais, e o sentimento que tenho é que ninguém leu uma única", acrescentando "Não falo nos analfabetos, stritu sensu ou funcionais, que os há e muitos, mas em gente, que, até por dever de ofício, deveria ler e informar-se sobre os temas que trato". E rematou: "É uma sensação nova, estranha, porque quando comecei a publicar, há 40 anos, havia mais apreço pelo conhecimento. Agora vejo 'declarações de amor' desmedido a Fontainhas, mas não vejo qualquer prova desse amor".
Creio que o meu amigo A. está a exagerar, pois conheço quem tenha lido muitas dessas páginas, mas acho que ele tem alguma razão, desde logo porque só se ama o que se conhece. Com efeito, a leitura parece arredada, diria cada vez mais, dos hábitos das gentes, a menos que surja sob a forma de "comprimidos". Há quem "escreva" e "leia" nas redes sociais, mas o conteúdo e a forma do fraseado é, frequentemente, lastimável. Claro que, é sabido, nas "redes" encontramos de tudo, não apenas a prosa tosca e deprimente que ofende as nossas sensibilidades.
Percebe-se que vivemos numa sociedade dominada pela imagem, de rápida e fácil assimilação, mas isso não explica tudo, até porque a imagem tem, é bom de ver, o seu lugar na comunicação e, claro, na arte. O maior problema está no menosprezo pelo livro e pela escrita, assumida, em certos círculos, até de forma agressiva, em aparente reflexo do desprezo pelo trabalho intelectual, que se verifica noutras paragens.
Em Fontainhas irrompem, hoje, múltiplos exemplos dessa casta, quantas vezes acoitados em seleto ambiente de bola, alguns razoavelmente etilizados, cuja voz se ouve graças à Internet. "É a tal 'legião de imbecis', de que falava Eco, pouco merecedora da nossa atenção", dizia-me A., que gosta de citar Umberto Eco. Mas, apesar dessa aparente desvalorização, já o tenho ouvido desabafar, bué de azedo, coisas bem pouco amáveis como "revolta no chiqueiro" e outras que tais.
É verdade que, quando um sujeito qualquer, que nem conhece A., arrota, por exemplo, referindo-se-lhe, que conhecimento histórico são "tretas" de quem quer "tachos", e outro acrescenta que o melhor era que A. fosse trabalhar e béu-béu-béu comunista e tal, é a ignorância quadrada e atrevida que emerge, além naturalmente de deficiente formação pessoal e, naturalmente, escolar. Mas há outros: inesperada e repentinamente, saem da toca uma caterva de patetas, cheios de si, exibindo uma sabença de coisa nenhuma, sobre esta terra e declamando asneiras sobre qualquer assunto estimável, achando que a sua "opinião" vale tanto ou mais que a de um estudioso do assunto. O meu amigo A. deu-me alguns exemplos risíveis, em Fontainhas, risíveis, claro, para nós, mas muito aplaudidos pelas respectivas cortes ou clientelas.
Esta extraordinária e variada fauna jurássica, "muito Fontainhas" (de facto, parece ser característica de Fontainhas), representa uma espécie de corrente que, importa reconhecer, não é muito numerosa, mas se assume muito claramente. Não direi que estamos à entrada de uma espécie de "Idade das Trevas", como A. acredita, mas há sinais da ascensão de uma espécie de "grau zero" na escala da inteligência, em que um criador de conhecimento é olhado com aversão por alguns marmanjos, simplesmente, como dizia Zenão, porque é diferente deles.
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