14h56 - quinta, 20/04/2023

A desdolarização do mundo


Fernando Almeida
Brasil e a China vão começar a comerciar nas respetivas moedas. Para os menos ligados a estas coisas da geopolítica e da geoeconomia, pode parecer que isso é insuficiente para justificar a nossa atenção, mas quem esteja atento ao funcionamento do mundo fica certamente, não só atento, como mesmo em alerta e preocupação crescente: essa mudança vai certamente afetar Portugal e cada um de nós.
Por vezes passam-se dezenas de anos com o mundo a mudar muito lentamente, mas há outros momentos da História em que tudo se precipita em mudanças súbitas e profundas, de tal modo que se torna difícil acompanhá-las e ainda mais perceber e antecipar as suas consequências a prazo. Mas comecemos pelo princípio…
Depois da II Guerra Mundial, com a Europa em farrapos, o Japão submetido, a China em guerra civil e com a URSS isolada e a recuperar de mais de 25 milhões de mortos, o mundo ficou em grande dependência dos Estados Unidos da América (EUA). Os EUA, já poderosa potência industrial e económica antes da guerra, ao contrário dos restantes países industrializados, não tinham sofrido destruição e, pelo contrário, tinham tido um forte estímulo à sua economia e grande acumulação de capital. Por sua influência e interesse, e a pretexto de regular o comércio mundial, fez-se o "Acordo de Bretton Woods" e criaram-se o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Nesta conferência fundadora deu-se uma importância fundamental ao dólar americano como moeda de comércio mundial, o que veio a marcar o mundo até hoje. Nesse tempo, os EUA eram de longe a maior potência industrial e económica do mundo, a moeda americana estava "ancorada" ao ouro, o seu valor era estável e era, por isso, interessante como moeda para o comércio mundial.
Mas em 1971 o presidente americano Richard Nixon transformou o dólar numa moeda fiduciária, ou seja, o dólar deixou de ser conversível em ouro ou em qualquer coisa com valor real além da confiança que os utilizadores nele depositassem, e portanto para os EUA deixou de haver necessidade de ter em reserva o ouro equivalente ao papel-moeda que andava em circulação. No entanto, muito embora a moeda circulante já não correspondesse a nenhum bem real, o seu papel no comércio mundial e a fé na vitalidade da economia americana mantiveram o valor da moeda. Com o tempo e com a pressão política e militar dos EUA, o dólar passou a ser moeda indispensável para o comércio internacional no geral, e particularmente no que respeita aos combustíveis – é o "petrodólar". Quem tentasse vender petróleo ou gás em outras moedas arriscava penalizações ou, pior que isso, poderia assinar a sua própria sentença de morte… Que o digam os iraquianos, e o seu presidente Saddam Hussein, ou os líbios, com o seu presidente, Muammar Gaddafi, que tentaram exportar petróleo e gás em euros!
Dada a situação única e privilegiada do dólar americano, os EUA, a partir de certo momento, passaram a poder emitir moeda cada vez que necessitavam, sem pensar nas consequências, e começaram a contrair empréstimos sem conta, esquecendo que um dia eventualmente seria necessário pagar. Por um lado, não necessitavam de ter em ouro o equivalente à moeda em circulação e, por outro lado, havia grande parte da sua dívida nas mãos de quem usava o dólar como garantia para os seus capitais e nos mais diversos países era usado como moeda de comércio internacional, logo ninguém estaria interessado na desvalorização e desacreditação da moeda…
Assim, ainda hoje, cada vez que é necessário dar resposta a uma crise económica, financeira, de saúde, militar ou apenas para agradar ao eleitorado e tentar ganhar as próximas eleições, os governos americanos vão à "máquina de fotocópias" e produzem dólares como se não houvesse amanhã. E, desse modo, acumularam uma dívida gigantesca. Atualmente, a dívida americana é de muito longe a maior do mundo e é superior a mais de 30 biliões de dólares (um bilião = um milhão de milhões). Anote-se que ainda em 2019 a dívida pública americana era de pouco mais de 22 biliões de dólares, ou seja, em três anos teve um crescimento gigantesco. Ela é tão grande que há muito quem pense que é virtualmente impossível de pagar ou que será muito difícil e doloroso se um dia os americanos tiverem que a pagar.
Ora o facto de o Brasil começar a negociar com moeda de outro país é apenas uma das muitas situações em que o comércio internacional começa a fugir ao controlo do dólar. Tanto a Arábia Saudita, como a Índia, a Rússia, a China, a Tanzânia, o Quénia, a Argentina, o Chile e muitos outros países já estão, ou vão em breve começar, a contratar bens e serviços em outras moedas, inclusivamente petróleo e outros produtos energéticos. Ao mesmo tempo, alguns países, como a China, vêm discretamente vendendo títulos da dívida americana e comprando e acumulando ouro. E os chineses são mestres da estratégia e da visão a longo prazo…
Se o dólar deixar de ser indispensável para comprar energia e outras commoditys, a prazo o valor dessa moeda pode cair e em consequência poderemos ter uma inflação descontrolada. Claro está que, se essa situação eventualmente ocorrer com o dólar americano nós, na União Europeia (UE) seremos infalivelmente contagiados, porque é estreita a ligação entre as economias europeia e americana, o sistema bancário está igualmente interdependente e, portanto, qualquer coisa que afete a economia americana terá implicações diretas neste lado do Atlântico.
Mas essa "desdolarização" do mundo por certo não acontecerá da noite para o dia, pelo próprio poder do sistema instalado e porque os rivais ao domínio americano também não estão interessados na criação do caos no Ocidente, tanto mais que necessitam dele para o prosseguimento do seu próprio crescimento e afirmação no mundo. Por isso, a mudança de domínio no comércio mundial demorará o seu tempo, o que poderão ser ainda muitos anos. A menos que os "mercados", que são "animais" nervosos e insaciavelmente gulosos, vejam numa mudança atabalhoada uma oportunidade de enriquecer ainda mais, por ter mais vantagens que prejuízos… Na incerteza, acho que, para nós, gente comum, quem possa ir convertendo as poupanças em investimento sólido provavelmente não se vai arrepender.



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