17h00 - quinta, 18/05/2023
O domínio colonial moderno
Fernando Almeida
Quando eu era jovem, Portugal estava na esfera de influência da França: cultura, conhecimento, prestígio era Sorbonne, música era francesa, e a primeira língua aprendida na escola era o francês. Depois vieram os de fala inglesa disputar esse domínio antigo da potência continental. Começamos a ter aulas de inglês na televisão (o Inglês da BBC), a música e o cinema passaram a ser esmagadoramente de origem anglófona, a tal ponto que o resto do mundo parecia ter desaparecido, e a primeira língua aprendida na escola passou a ser o inglês. Aparentemente ninguém cantava ou fazia filmes na Alemanha, na Turquia, na Rússia, na Índia, no Egito, no México ou em qualquer outro país do mundo. Chegamos ao ponto de muitos portugueses não gostarem de ver filmes ou ouvir música na sua própria língua, e se sentirem inferiores aos povos do norte, dando preferência ao que fosse importado desses países que consideravam "superiores". Essa atitude contribuiu para deixar falir ou viver na penúria as nossas próprias empresas, que (também por isso) pagavam salários baixos e criavam um mercado anémico que em nada estimulava o progresso económico e o desenvolvimento social do país. Como chegamos a isto? Terá sido só connosco?
O poder e a ganância, por vezes, tornam-se de tal modo viciantes, que o domínio das elites sobre o seu próprio povo é insuficiente para a satisfação dos seus anseios. Por esse motivo, desde há muito os poderosos usam de todos os expedientes para estender o seu domínio a outros povos, nem que para tal tenham que fazer a guerra. Esse processo de domínio de povos por estrangeiros tem variado, havendo imperadores generosos e respeitadores dos povos conquistados, como Ciro, o Grande, e outros, infelizmente os mais comuns, que esmagam feroz e continuadamente as gentes que têm a pouca sorte de lhes cair nas garras. Os últimos séculos foram férteis na criação desse tipo de domínio, com os europeus a esmagar os povos de quase todo o mundo, levando alguns à extinção absoluta e outros à submissão total. Esse domínio foi quase sempre aquilo a que genericamente se chamou de colonialismo.
No século XX o colonialismo clássico tornou-se ineficaz, caro e mesmo por vezes insustentável. O mundo bipolar da segunda metade do século instigava e patrocinava a revolta dos povos colonizados, e alguns dos colonizadores de espírito mais arguto e de maior capacidade de antever o futuro, como os ingleses, viram nessa perda de domínio direto das colónias não um problema, mas antes uma oportunidade. Podiam perder o domínio político, administrativo e militar das suas antigas colónias, mas desde que mantivessem inalterada a relação económica e o controlo do rumo político das elites locais, essa mudança até poderia ser vantajosa. Percebeu-se que por esse processo seria possível vir a dominar muitos outros povos, mesmo que antes não tivessem sido colónias.
Para conseguir esse controlo subtil investiram na promoção da sua língua e cultura, procurando atrair para elas os povos que queriam dominar, e muito especialmente as suas elites. Estimularam e patrocinaram a ida de jovens quadros dos países mais pobres para as escolas e universidades do Reino Unido, e difundiram até ao limite os padrões estéticos e culturais do mundo anglófono. Era preciso que os jovens dos países mais pobres se embebessem na cultura dos países de língua inglesa, que fossem falantes dessa língua, e que esses "dons" fossem tomados, não como evidência de traição aos povos nacionais, mas antes como elemento de prestígio potenciador da ascensão social e económica. Outras nações europeias com passado colonial tentaram com menor sucesso a mesma receita. Portugal, no seu duplo estatuto de colonialista, mas também de dominado por potências maiores, teve nessa matéria um desempenho medíocre.
A receita inglesa funcionou tão bem que permitiu o controlo geral das suas antigas colónias, a exploração dos seus recursos naturais, da sua mão-de-obra e dos seus mercados. Como se percebeu que o destino dos povos podia ser condicionado através do controlo da sua cultura, da língua e da informação que lhes chegava, alargou-se essa forma de dominação a países que não eram colónias, mas cujas elites eram permeáveis à troca dos valores e interesses nacionais pelos de outros países. Foi assim que, neste enorme tabuleiro de xadrez que é a geopolítica mundial, triunfou uma nova forma de conseguir o domínio dos povos e dos seus recursos: quando os povos começaram a preferir ouvir música e ver filmes numa língua que não a sua, e quando se sentiram inferiores aos estrangeiros em vez de sentirem o orgulho na sua diferença, na sua liberdade e independência, estavam realmente controlados, ainda que sem se aperceberem disso.
Menos agora, que a crise de 2008 abriu os olhos a muita gente, mas ainda hoje falta a alguns de nós o amor-próprio que nos faça sentir, pelo menos, tão bons como qualquer outro povo do mundo. No entanto, para muitos de nós, a submissão aos interesses dos estrangeiros, a entrega dos nossos recursos fundamentais às empresas dos outros, a forma ostensiva com que governantes de outros países decidem sobre os nossos assuntos, tornam-se cada vez mais inaceitáveis e sentimos que precisamos de governos que governem na defesa dos portugueses, sem hostilizar ninguém, mas também sem viver na obediência aos interesses dos outros.
A vontade de defender os interesses e a cultura de cada povo, e mesmo a sua dignidade, tem despertado nacionalismos populistas demagógicos, que fazem cada vez mais investidas oportunistas. O difícil neste momento da nossa História será conseguir governantes capazes de defender os interesses de Portugal e dos portugueses, fugindo à obediência cega dos poderosos do Ocidente que nos manipulam, sem que, no entanto, se mostrem contra seja lá quem for. Dito de outro modo, é preciso ter um governo que não ande às ordens dos estrangeiros, mas também não esteja contra nenhum deles, e com todos consiga trabalhar em benefício do nosso povo. Certamente que se podem encontrar complementaridades vantajosas para a nossa relação com todos os povos do mundo, numa lógica de respeito mútuo, não deixando que nos imponham a sua vontade, mas também não tentando impor a nossa forma de pensar aos outros.
Se não me enganar, essa será a nova via para a relação entre os países do mundo que mais adeptos vai ter nos próximos anos. Vamos a ver se também nessa caminhada ficamos para o fim
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