09h34 - quarta, 06/12/2023
O "mentiredo" na política
Fernando Almeida
Os mais velhos e os mais atentos saberão bem que na geopolítica as coisas raramente são aquilo que parecem ser. Se se acusou o presidente do Panamá de ser traficante de droga e se invadiu o país para o capturar e deixar a apodrecer numa prisão, não foi certamente por ele traficar droga (desculpa até ridícula que só os mais crédulos convenceu); é claro que o objetivo da invasão foi efetivamente substituir o presidente Manuel Noriega por um outro que fosse mais "amigável" para os interesses dos EUA e, sobretudo, que não ousasse questionar o estatuto do Canal do Panamá.
Outro tanto se passou com a invasão do Iraque, que se tentou justificar com a suposta existência de armas nucleares (a CIA até forjou faturas falsas de venda de urânio ao Iraque para convencer o povinho que estava ali um perigo mundial); no entanto provou-se que, conforme garantiam os inspetores da ONU, tais armas nunca tinham existido e está à vista de todos que o real objetivo da invasão passou pelo petróleo e seu comércio, pelo enfraquecimento do mundo muçulmano do Médio Oriente, etc.. Como diz o povo, "tudo mentiredo". Mas "mentiredo" que matou centenas de milhares de pessoas que só queriam estar tranquilas na sua vida. Os exemplos do cinismo e da falsidade na geopolítica são tantos que nem vale a pena continuar a enumerá-los.
Isto vem a propósito do mais recente e mediático acontecimento do mundo que é o conflito na Palestina entre Israel e os diversos movimentos de resistência apoiantes dos palestinianos, em particular o Hamas. O que parece, e que insistentemente nos tem sido contado em todos os noticiários nos últimos tempos, é que os guerrilheiros do Hamas, que sistematicamente designam por "terroristas", fizeram a 7 de outubro uma incursão em Israel com a qual provocaram mais de mil mortos e centenas de reféns. Parece também que o governo de Israel foi apanhado de surpresa e que, por isso mesmo, as forças armadas do país demoraram a reagir. Mas, como se sabe, na geopolítica as coisas raramente são aquilo que parecem ser
Sabe-se que os serviços de informações de Israel são dos melhores do mundo, o que desde logo deixou incrédulos os analistas destas coisas: como teria sido possível que com os serviços secretos de altíssima qualidade que Israel possui, uma operação altamente complexa que envolveu anos de preparação e milhares de pessoas não tivesse sido descoberta a tempo de se evitar o pior? As dúvidas adensaram-se ainda mais quando se soube que os serviços secretos da Rússia e do Egito sabiam da eminência de uma grande operação do Hamas e que o governo do Sr. Benjamin Netanyahu tinha sido informado, mas diz-se que não deu importância aos avisos. Estranho, porque Israel nestes assuntos, como se compreende, está sempre com "o dedo no gatilho".
Também se sabe que o Sr. Benjamin Netanyahu tem sido alvo de enorme contestação interna em Israel, primeiramente pelas fortes suspeitas de corrupção e, mais recentemente, pela suposta tentativa de controlo e manipulação do poder judicial do seu país (ao que dizem, para se vir a livrar das acusações de corrupção de que tem sido alvo). Dizem as más-línguas que para o Sr. Netanyahu este episódio veio mesmo a calhar quando se realizavam das maiores manifestações da História de Israel contra ele. É igualmente estranho que, segundo o jornal israelita "Haaretz" de dia 18 de novembro, uma parte dos israelitas foram mortos pelos próprios militares de Israel, que usando um helicóptero de ataque e diversos tanques atiraram indistintamente sobre as viaturas que circulavam e os locais onde os militantes do Hamas tinham retidos reféns, matando tanto palestinianos como israelitas. Acresce que parece evidente que o objetivo do Hamas nesse dia 7 de outubro seria essencialmente trazer a questão da Palestina para o "palco mundial" das notícias, mas também o de fazer o maior número possível de reféns que permitisse negociar a troca com prisioneiros palestinianos encarcerados por Israel. Logo parece ilógico e improvável que os guerrilheiros do Hamas tivessem como objetivo matar israelitas, mas antes capturá-los vivos para servirem de moeda de troca. É claro que as descrições de Israel de crianças degoladas pelos militantes do Hamas cedo se viu que eram falsas e não passaram de propaganda de Israel para justificar as operações militares em Gaza que se seguiram. O mesmo aconteceu certamente com muitas outras descrições de atos bárbaros supostamente praticados por palestinianos. É o "Pedro e o lobo"
Quem mente repetidamente perde a credibilidade.
Já agora, e porque é raro que o petróleo não ande ligado às guerras das últimas dezenas de anos, descobriu-se que Gaza e as suas águas têm grandes reservas de petróleo e gás natural, e esse poderia ser um excelente negócio para muita gente de Israel se o território estivesse sob o seu domínio
Talvez por isso a tentativa de obrigar as populações de Gaza (mais de dois milhões de habitantes numa área equivalente à freguesia de São Teotónio) a fugir para sul, para o Egito. O território de Gaza não é muito, mas tem muito petróleo
E talvez por saber de tudo isso (e por não gostar da ideologia do Hamas, próxima da Irmandade Muçulmana), o Egito bloqueou a passagem à população que queria fugir de Gaza a todo o custo, o que até nos pareceu algo absolutamente desumano.
Em resumo: os Estados Unidos continuam a usar Israel para criar instabilidade no Médio Oriente; o Hamas precisa de palco para melhorar a situação em que vivem os palestinianos; o Sr. Netanyahu tenta fugir aos seus problemas com a justiça e manter-se no poder a todo o custo; alguns dos maiores negociantes de petróleo do mundo perseguem novas fontes de receita; o Egito evita a entrada de populações radicalizadas no seu território
Entretanto, os israelitas morrem e vivem na insegurança permanente (em Israel e fora do país) e os palestinianos, bombardeados e privados das suas terras e casas, morrem aos milhares e são um povo cada vez mais revoltado onde, necessariamente, nascerão todo o tipo de "terroristas". Não me parece que seja assim que se resolva o problema.
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