15h47 - quinta, 11/01/2024

Tempos fáceis criam homens fracos


Fernando Almeida
Há um provérbio oriental que diz que "homens fortes criam tempos fáceis, mas que tempos fáceis criam homens fracos, e homens fracos criam tempos difíceis". Receio que esse provérbio, que reflete a sabedoria acumulada por muitas gerações, adivinhe que para nós os tempos difíceis estão a chegar.
Quando eu era menino de "escola primária", tinha muitos problemas com a grafia da língua portuguesa. Não havia maneira de fixar a norma ortográfica e, de castigo, repetia vezes sem conta as palavras mal escritas nas cópias e nos ditados. Ainda assim, adiantava pouco, porque volta não volta trocava as sílabas das palavras e esquecia as irregularidades da grafia do português, "dando erros de palmatória", como se dizia no tempo em que se batia nas crianças, que arrepiavam os mais puristas. Ao tempo (e em parte ainda agora) o conhecimento da norma ortográfica do português era marca de diferenciação social e, talvez por isso, muitas vezes se valorizava mais a forma que o conteúdo naquilo que os mocinhos escreviam. Podia ter um texto muito criativo e indiciador de um fino espírito observador, mas se tivesse erros ortográficos…
Sabendo isso, minha mãe repetia-me vezes sem conta: "Filho, tens mais dificuldade que os outros, por isso tens que te esforçar mais; tens que ler muito e escrever ainda mais, sempre com atenção para não dar erros". E eu, bem contrariado, porque para mim a forma dos textos sempre foi pouco relevante quando comparada com as ideias que eles transmitem, lá ia tentando corrigir a minha crónica deficiência no cumprimento da norma ortográfica. O remédio de minha mãe, que hoje percebo era uma senhora discreta mas de grande sabedoria, era esse: se tens mais dificuldade que os outros, trabalha mais para não ficares atrás deles.
Anos mais tarde, já nos tempos da revolução, eu era jovem e julgava que sabia muito sobre a vida e podia mudar o mundo. Vai daí desvalorizava as aulas em favor das atividades "revolucionárias" que um adolescente podia desenvolver. Grandes debates sobre o futuro da sociedade, sobre a propriedade dos meios de produção, sobre o papel da família e sua função social, e tudo o mais que cabia na ingenuidade de um rapaz daquele tempo. Grandes teorias e projetos sobre o futuro do mundo… mas poucas aulas. Minha mãe, embora preocupada com a falta de responsabilidade escolar do filho, não acorria à escola a justificar as faltas para as quais não havia real justificação, nem me desculpava face aos professores que, com razão, me consideravam irresponsável e desinteressado pela escola. Ela sabia que muito embora eu estivesse a aprender outras coisas fora da escola, os conhecimentos das diversas disciplinas me iriam fazer falta na vida e, assim, justificar faltas que resultavam apenas do meu desinteresse pela escola, em nada me iria ajudar no futuro.
Nesse tempo era assim. A maioria dos pais sabia que para ajudar os filhos no futuro era necessário ensinar-lhes o caminho da responsabilidade, do trabalho e da perseverança. Nesse tempo, era necessário lutar para se conseguir cada pequena melhoria na vida e, para isso, era essencial começar cedo a preparar esse espírito resistente e de lutador. Eram tempos difíceis e parece-me que esses tempos difíceis criaram homens fortes.
Mas o mundo mudou e, felizmente, as grandes dificuldades e mesmo a miséria generalizada de outros tempos acabaram. A geração que passou por essas dificuldades tenta agora poupar aos filhos e netos o mais possível as contrariedades que a vida lhes possa trazer, facilitando em tudo o seu dia-a-dia. Sei que é para nós quase irresistível facilitar a vida aos nossos jovens, principalmente quando ainda temos memória das dificuldades de outros tempos, mas cada vez mais me pergunto se esse será o melhor caminho para o seu futuro. E receio bem que não seja!
Vejo hoje estudantes que, tal como eu em tempos idos, têm dificuldade na leitura e na escrita, mas vejo que a receita que minha mãe usou comigo, e que era a mais usada nessa época e que tão bom resultado dava, já não é geralmente seguida. Hoje há no concelho de Odemira dezenas de estudantes dos diversos ciclos de ensino que são quase incapazes de ler e que mesmo para fazer um simples teste necessitam que um professor lhes leia a prova. A visão tradicional – "se tens dificuldade, trabalha mais" – foi substituída pela lógica da facilitação e da irresponsabilidade – "se tens dificuldade, não te esforces, que alguém fará por ti".
O mundo mudou profundamente e hoje muitos estudantes sabem que face ao seu absentismo injustificado ou mesmo aos seus maus resultados escolares, os pais correrão à escola a inventar desculpas para as falhas dos filhos e que poderão mesmo tentar pressionar os professores para que, de algum modo, lhes facilitem a vida. É claro que todos nós que somos pais ou mães tentamos ajudar os nossos filhos e tentamos evitar-lhes dificuldades e sofrimentos inúteis. Mas parece-me que o excesso de proteção cria espíritos fracos que não aprendem a lidar com as dificuldades e as contrariedades que a vida sempre trás e trará. Muitos deles acabam por cair na tristeza e na depressão, mesmo que nada de importante lhes falte no seu dia-a-dia, e é certo que não é por terem tudo e nada lhes faltar que são mais felizes e estão mais preparados para a vida adulta.
Por isso me pergunto se este caminho de facilidade e desresponsabilização pelo qual conduzimos os mais novos terá a melhor orientação para lhes assegurar um bom futuro? Será que facilitar em demasia a vida hoje vai dificultar a vida amanhã? É que, como diz o provérbio, "os tempos fáceis criam homens fracos e estes homens fracos vão criar tempos difíceis". Somos nós que hoje preparamos o futuro dos mais novos, e receio que não estejamos a escolher o rumo certo para eles.



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