16h54 - quinta, 25/07/2024

Viva a aldeia da serra


Fernando Almeida
Havia num reino distante duas aldeias vizinhas. Uma ficava na serra e a outra ficava no vale. Ambas tinham uma equipa de futebol, mas com algumas diferenças importantes. Na aldeia da serra, o clube aceitava todos os jovens nas suas equipas, mesmo os que eram rejeitados na vizinha aldeia do vale por não terem as melhores características para jogar. É claro que havia na equipa da aldeia da serra bons jogadores, cheios de técnica individual e visão de jogo, mas também havia os outros, os que nem tinham grande interesse nem vocação para o desporto, os obesos que pouco conseguiam correr, e mesmo um coxo. Alguns preferiam ficar no banco, entretidos com o telemóvel, a saltar para o relvado e suar as estopinhas a correr atrás da bola e do resultado. Havia mesmo um dos jogadores, o "tolo", que de quando em quando, inexplicavelmente, corria com a bola para a sua própria baliza e chutava com quanta força tinha, como quem mostra revolta contra, sabe-se lá, a família, a equipa ou mesmo o mundo. Mas, bem ou mal, todos jogavam, e os treinadores iam tentando melhorar os dotes naturais ou aprendidos de cada um deles.
Já o clube da aldeia do vale selecionava os candidatos a desportistas com rigorosos testes de aptidão física e psicológica, só aceitando na equipa e deixando treinar os melhores, ainda que tivesse que os recrutar em todas as aldeias da região. Gabava-se, com razão, de ter um belo conjunto de desportistas de elite que enchiam de orgulho a direção do clube e faziam as delícias do treinador e demais equipa técnica. A motivação do grupo era excelente e não era raro ver os jogadores a treinar por iniciativa própria, mesmo fora do tempo a isso destinado pelo clube. Muitos dos jogadores dessa equipa dispunham também de treinadores pessoais (os personal trainer, tão na moda atualmente), que preparavam programas individuais específicos para responder às necessidades de cada um deles. Ali tudo era pensado e cuidado, desde os equipamentos e espaços para treino, até aos cuidados com a alimentação de cada jogador.
O campeonato das aldeias desse país distante decorreu como habitualmente, com vitórias e derrotas, mas no final a equipa da aldeia do vale venceu, como de resto seria de esperar. Fez-se uma grande festa, distribuíram-se taças e medalhas e o clube da aldeia do vale foi declarado o melhor entre todos os clubes de todas as aldeias daquele país. Pelo contrário, o clube da aldeia da serra ficou longe das posições cimeiras da competição e, por isso, passou a ser olhado com desconfiança e desprezo pela comunidade da região e mesmo desse país distante.
Mas na verdade, quando o campeonato acabou, na equipa da aldeia da serra os bons jogadores, aqueles com melhores dotes físicos, técnica individual e motivação, tinham evoluído bastante, talvez para superar as dificuldades criadas pela ineficácia de outros jogadores da formação; os obesos estavam menos obesos e tinham começado a melhorar a sua dieta e a fazer caminhadas para prevenir futuros problemas de saúde; o coxo, embora não deixasse de coxear, estava mais musculado, flexível e rápido no andar e correr; e mesmo o "tolo" tinha aprendido a cooperar com a equipa e já chutava para a frente, numa nova atitude de relação com os outros. Ao observar bem o que se tinha passado na sua equipa, o presidente do clube reuniu o coletivo e declarou oficialmente o seu clube como vencedor absoluto da competição, distribuindo medalhas a todos os jogadores, equipa técnica e auxiliares.
Lembrei-me de inventar esta história quando vi, mais uma vez, o "ranking" das escolas, em que nos primeiros lugares estão as escolas privadas e em que se tenta comparar as escolas públicas, que recebem e incluem nas suas turmas todos os alunos das comunidades, sem olhar à sua situação económica, passado escolar e características individuais, com os colégios privados que selecionam os alunos que recebem.
Em boa parte das instituições de ensino privadas que aparecem nos lugares cimeiros dos ranking's, a seleção dos candidatos à frequência é rigorosa, sendo à partida descartadas todas as inscrições de candidatos que não apresentem avaliações anteriores excelentes. Também acontece que, se um aluno que as frequenta não corresponde aos padrões exigidos pela instituição (seja ao nível do aproveitamento, seja ao nível do comportamento), é geralmente "convidado" a mudar de escola, eventualmente, se o caso for grave, para uma escola pública. Como as propinas ou mensalidades destas mesmas escolas são muito elevadas, há também, inevitavelmente, uma seleção de base económica dos alunos que as frequentam, o que é garantia que haverá, sempre que necessário, apoios extraescolares de explicadores especializados sem olhar a custos.
Pelo contrário, na escola pública cabem todos, mesmo os que não querem estudar e que preferem estar agarrados ao telemóvel no "banco" e longe do "relvado". Como na equipa da aldeia da serra, na escola pública estão lá os "bons", os que têm capacidade, background e objetivos, mas estão também os indiferentes, para os quais ter bons ou maus resultados é quase irrelevante; estão lá os que trazem graves deficiências de formação anterior, os que têm défice cognitivo mais ou menos severo, os que vivem situações de instabilidade familiar que os tornam revoltados e perturbadores do trabalho coletivo, os que prejudicam o trabalho da equipa, como o "tolo" da aldeia da serra… Por isto, se a escola pública consegue que o "indiferente" se torne interessado, que o "tolo" passe a cooperante ou que o que é portador de uma qualquer deficiência evolua positivamente, e ao mesmo tempo consegue fazer chegar às universidades muitos outros alunos que no ensino superior apresentam melhores prestações que os que provêm dos colégios privados, então quem é a verdadeira vencedora é a escola pública, embora não esteja nos tops dos ranking's dos exames nacionais. Isto não significa que a escola pública não tenha os seus problemas que devem ser corrigidos, mas que pelo contrário se deve valorizar o muito que nela se faz e contribuir para que muito mais se venha a fazer. Se isto é assim, e se todos sabem que é falacioso comparar realidades tão díspares como escolas públicas e privadas, pode perguntar-se por que motivo, ano após ano, se repete esta cena triste de publicar as listas com as classificações dos exames, exaltando nelas as escolas privadas.
Eu, não querendo ser demasiado "conspirativo", tenho a convicção que é mais um elemento para construir na comunidade a ideia que tudo o que é público funciona pior que o que é privado, ideia já sobejamente criada e propagada com exemplos igualmente falaciosos e que leva a que muito boa gente já acredite nisso…



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