16h01 - quinta, 21/11/2024
Monumento ao Cante
Fernando Fonseca
[...] Há cerca de 40 anos fiz o primeiro esboço deste monumento, por sentir que faltava algo a anunciar aos forasteiros, que no Portugal física, climática e culturalmente diferenciado, estavam a entrar no Alentejo.
As culturas, todas elas, foram sempre acontecimentos dinâmicos, cada uma expressando-se de modo diferenciado e identitário, até que nesta era da globalização geral se fundem numa nova cultura de características que escapam às previsões mais utópicas. Se a norte do Tejo são as montanhas a elevar-se para o céu, ao nosso Alentejo das planícies, suaves colinas e modestas serranias, faltava algo que se elevasse, libertando-nos das agruras que nos prendem ao chão.
Aqui, só algo de imaterial poderia libertar-se; e de imaterial, reflexo do caldeamento das culturas humanas, só numa dimensão espiritual. Mas a espiritualidade, essa coisa indefinida, esse perfume da cultura que não se vê, não se sente e não se troca, para manifestar-se, precisa da filosofia, precisa da poesia e da música, da literatura e do teatro, precisa da dança ou das artes plásticas. E para se libertar dessa condição de matéria, matéria viva, e porque a vida sendo a melhor coisa que temos, foi sempre uma "carga de trabalhos", o alentejano, especialmente o trabalhador rural que às geadas ou ao calor abrasador, arrancava da terra que o gerou, o seu sustento, inventou o Cante; um cântico agregador que canta as coisas boas como um hino à vida. Canta a Natureza, canta o trabalho, canta o convívio e a amizade, canta a diáspora, mas canta, e canta tão bem, o Amor, cantando-o com ternura.
Diz o povo que "Quem canta seus males espanta". E o cante é, por essência, uma canção libertadora. Celebrar o Cante é inseparável de celebrar as gentes trabalhadoras que partilharam dificuldades e sacrifícios solidariamente, até ao libertador 25 de Abril de 1974. Se uns iam para a Europa reconstruir o que foi destruído na II Guerra Mundial, os que ficavam migravam temporariamente para os arrozais do Sado, ou ganhavam o seu pão nas mondas e ceifas dos trigais, na pastorícia, ou na cava dos milharais.
Esta realidade fez-me entender que o trabalho familiar ou grupal, proporcionando coesão, foi gerador de uma força unificadora, e que sendo todos eles e elas, diferentes no aspecto e nos modos, constituíam uma unidade.
Esta escultura concebida como figura de convite foi-me encomendada pela Câmara Municipal de Odemira presidida então pelo eng. José Alberto Guerreiro. Destinava-se à encosta sul da Baiona virada ao Algarve, para anunciar a quem viesse do Sul, que estava a entrar no Alentejo. Impedimentos incontornáveis não permitiram essa concretização, sendo este sítio virado ao privilegiado panorama ribeirinho de Odemira, o lugar definitivo: o "Miradouro do Cante Alentejano".
Ao observarmos a escultura, onde juntei altos e baixos, magros e barrigudos, chapéus à banda, puxados para a nuca ou a proteger os olhos do sol inclemente, julgo ter conseguido a coesão dessa diversidade, evidenciada na continuidade das formas e na robustez dos braços que os ligam entre si.
Quando chegou o momento de orçamentar a obra, e conhecedor das necessidades a que o extenso município de Odemira tem de corresponder, procurei a melhor maneira de levar o projecto a cabo, com o menor custo possível. Formei-me em Escultura, quando as técnicas de ampliação nesta arte recorriam ainda aos quinhentistas pantógrafos artesanais, e assim o pratiquei nos ateliers de três notáveis mestres com quem tive o benefício de colaborar aprendendo. Este processo clássico, garantindo qualidade máxima, arrastar-se-ia no tempo, acarretando elevados custos de mão d'obra; e de três modelos orçamentais, considerei que o mais baixo seria sempre alvo certo de críticas de despesismo.
Porque entretanto os processos digitais se tornaram bastante acessíveis, procurei recorrer a essa tecnologia, mas uma impressora 3D para estas dimensões, ainda estava em Itália, numa fase experimental. Por fim, descobri que a solução ainda com o recurso à digitalização, seria com fresa computorizada sobre material reciclável. Utilizaria os materiais próprios do nosso tempo sendo muito mais rápida e com menos mão d'obra.
Propus à Câmara Municipal a competente e idónea empresa GATE7, para ampliação e construção. O corpo da escultura é constituído por uma carapaça de fibra de vidro estruturada com vigas de aço, reforçada interiormente por uma camada de betão projetado sobre uma malha metálica e ancorado com grampos de aço na laje de assentamento. O acabamento da superfície com "TopCoat", resistente aos raios ultravioletas, reporta à brancura dos montes a destacarem-se na paisagem alentejana.
Para chegar à obra final que agora contemplamos, a escultura evoluiu ao longo de quatro fases de ampliação a diversas escalas, sendo que para a última maqueta, com 2 metros de altura e 4 de largura, se justificaria ser fundida em bronze, para assegurar a sua perenidade, e colocada em ambiente urbano a eleger.
Por último e para finalizar esta descrição, uma referência à base. A frente da escultura, por ter um traço encurvado, pedia uma base adequada a esse contorno a justificar a forma elíptica do pedestal. E porque a configuração original do terreno, criava um ângulo morto que impedia a visibilidade integral para quem olhasse do cais, decidi pela sobreposição de três planos elípticos. Daí resultam os degraus que servem para quem, sentado, quiser usufruir do panorama que nos envolve de modo especial, com a vila, o rio, e as ladeiras da outra banda.
Por último, esclarecer que a utilização do xisto local na alvenaria rústica da base, é uma referência à dureza do chão que os homens pisam, sempre que trocam o seu suor pelo pão de que precisam.
Outros artigos de Fernando Fonseca