15h20 - quinta, 23/01/2025
A confiança e a desconfiança
Fernando Almeida
Qualquer um que tenha uma memória menos má se lembrará de ver, na primavera de 2022, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, com um ar sério e confiável, afirmar, de olhos fitos na objetiva da câmara que a filmava (para nos parecer que está mesmo a olhar-nos nos olhos), que os russos estavam totalmente enfraquecidos e a esgotar os seus stocks de armas. Andavam já, segundo ela, a retirar os chips às máquinas de lavar para poderem fabricar mais alguns misseis e na frente de batalha já lutavam com pás, dada a escassez de material bélico. Disse este tipo de disparates, e muitos outros do mesmo calibre, sabendo que eram totalmente falsos, mas disse-os com um ar convicto, para nos fazer crer nas mentiras que propagava.
Se ela mentiu sabendo certamente que estava a enganar-nos para que aceitássemos a loucura de uma guerra que teria sido facilmente evitada, foi certamente coadjuvada na falsidade pelos nossos políticos de "topo", porque só um tolo pensará que eles próprios não sabiam que tudo o que se andava a dizer era falso. Culpa igual tiveram os jornalistas dos principais órgãos de comunicação social, gente batida na informação e na desinformação que só se deixa enganar se quiser ser enganada
Estes últimos têm mentido escandalosamente, propagando as falsidades que correm por aí, mas também dizendo meias verdades, com as quais conseguem controlar o pensamento do cidadão comum. Quando estes atores (políticos de topo e jornalistas) não garantem o convencimento do povo, chamam-se comentadores que são supostamente "especialistas" em diversas matérias, que muitas vezes confirmam, justificam e ampliam as mentiras
Eu, que serei insuspeito, porque não nutro nenhuma paixão por Donald Trump, achei escandalosa a forma como a nossa comunicação social tratou os candidatos às eleições presidenciais nos Estados Unidos da América. Tanto os jornalistas como os comentadores escolhidos para abordar o quotidiano dos candidatos estiveram muitíssimo longe da imparcialidade que se exige do jornalismo a sério. Pareciam propagandistas pagos para denegrir um dos candidatos e valorizar o outro. Mas, na verdade, os grandes órgãos de comunicação social do mundo são propriedade de grandes empresas, que os controlam e manipulam a seu belo prazer e já demonstraram que geralmente não cumprem minimamente os bons preceitos do verdadeiro jornalismo.
Segundo um estudo publicado não há muitos meses, somos o terceiro país, numa lista de 46, em que mais se acredita na informação veiculada pela comunicação social. Mais crédulos (ingénuos ou acríticos) que nós, só mesmo os quenianos e os finlandeses. Por isso, tem sido fácil contar-nos todo o tipo de "contos do vigário" e conseguir com eles levar-nos à certa. No entanto, há povos, porque mais cultos, mais críticos ou simplesmente mais escaldados das fake news que inundam os noticiários televisivos, as bancas dos jornais e as redes sociais, que não se deixam enganar da mesma maneira e começam a desconfiar de todo o sistema e seus atores.
E é assim que vão surgindo e se vão reforçando os partidos ditos extremistas, de extrema-direita ou de extrema-esquerda, nacionalistas, tudo isto, também, epítetos que visam desacreditar esses partidos e as suas propostas. Mais uma vez sou insuspeito de defender os partidos populistas, anti-imigração, racistas e demagógicos, mas o facto de não gostar deles não significa que ache bem que sejam discriminados negativamente por um jornalismo parcial e não confiável que temos. O jornalismo sério tem que nos fornecer informação verdadeira e confiável, para que cada um de nós possa criar as suas opiniões, e não notícias tendenciosas e enviesadas com opiniões já cozinhadas para nos manipular.
O último escândalo, que passou discretamente na comunicação social portuguesa (e europeia) como coisa de pouca relevância, foi a anulação das eleições presidenciais na Roménia. Como o candidato Calin Georgescu ganhou a primeira volta das eleições presidenciais na Roménia e estava bem colocado para as vencer na segunda volta, arranjaram uma "estrangeirinha" para ganhar na "secretaria" o que perderam no terreno de jogo: conseguiram que o Tribunal Constitucional da Roménia anulasse as eleições, alegando que ele tinha sido beneficiado no TikTok, que isso era influência russa, bla, bla, bala
Mas o facto é que as eleições foram anuladas apenas porque o candidato Georgescu tinha um programa que não era do seu agrado. Os mesmos senhores esperam conseguir agora, com um controlo mais apertado da comunicação social e com quase todas as redes sociais na mão, alterar o sentido de voto dos romenos. O mesmo se passa na Geórgia, onde as eleições foram ganhas por um candidato pró-Rússia e que por aqui se insiste que os resultados não deveriam ser respeitados porque
o vencedor é pró-russo e isso não lhes agrada.
Quem tenha alguma memória e anos de vida suficientes se lembrará de imensas situações semelhantes: no Egito, Mohamed Morsi ganhou as eleições em 2011 e foi deposto por um golpe de estado favorecido pelos "de cá" e silenciado pela nossa "muito isenta" comunicação social. Acabou morto, supostamente, com um ataque cardíaco quando já estava preso; a FIS (Frente Islâmica de Salvação da Argélia), depois de ganhar as eleições em 1991 com mais de 80% dos mandatos, foi ilegalizada e os seus militantes foram mortos em massa pelos militares golpistas apoiados pelos do Ocidente; ou, de uma forma geral, como se cria suspeita sobre a qualidade das eleições em qualquer país quando os resultados não são favoráveis aos interesses destes daqui. De um modo geral, as eleições em todos os países em que ganham partidos que não lhes são fiéis passam a ser consideradas como suspeitas, não isentas, manipuladas e inválidas. Nesse caso, devem ser anuladas. Se ainda assim não conseguem ganhar as eleições de maneira nenhuma, deve-se proporcionar um golpe de estado de forma a colocar no poder alguém da sua confiança Uma "Primavera", um "Maidan", uma "revolução colorida qualquer.
Se a democracia se transformou num regime controlado por quem paga as campanhas eleitorais e "compra" das decisões dos partidos; se a comunicação social é propriedade dos mesmos grupos que pagam as campanhas eleitorais e dominam os partidos, e assim domina também a opinião pública; se os resultados das eleições só se respeitam se interessarem às mesmas elites
então a democracia transformou-se numa forma de controlar os povos e suas riquezas e já nada tem dos princípios morais que lhe deu origem. Tristemente, a democracia no mundo ocidental foi conquistada pela elite dos super-ricos que em tudo mandam e perdeu a sua pureza original. Depois queixam-se que há quem defenda sistemas não democráticos.
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