14h52 - quinta, 12/06/2025

Os pequenos reizinhos


Fernando Almeida
A ideia de que o Homem é naturalmente puro e bom, e que são as sociedades complexas que o corrompem, deve ser muito mais antiga que o que geralmente imaginamos. Não é difícil encontrar essa relação no Antigo Testamento, particularmente no mito de Babel ou na destruição das cidades de Sodoma e Gomorra. Na tradição rabínica, os pecados de Sodoma, além dos de natureza sexual mais divulgados entre nós, estavam relacionados com ganância, falta de compaixão e de hospitalidade para com os forasteiros, e de um exagerado apego aos bens materiais. Muito mais tarde, Cristóvão Colombo fala do "paraíso terreal" que teria encontrado nas américas onde o clima perfeito condizia com homens puros e ingénuos e sem malícia. Também Pêro Vaz de Caminha, na carta que envia a D. Manuel, descreve os nativos americanos da terra que um dia se viria a chamar Brasil do mesmo modo, como gente sem maldade e pura: "E suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma". Parece, portanto, que se associa a ideia de povos puros, bons, generosos e sem maldade, a sociedades "primitivas", e se associa ao mundo urbano de sociedades numerosas e complexas, a maldade e a corrupção. E na verdade essa ideia encontrará até alguma razão de ser, pelo menos nas sociedades europeias.
Mas a criação e consolidação do mito do "bom selvagem" deve-se, evidentemente, a Jean Jaques Rosseau, que no século XVIII promove a ideia que o ser humano é bom por natureza e que a sua maldade resulta apenas dos erros e vícios da "civilização". Havendo ou não razões nessa perceção antiga, a ideia ficou, fez escola e passou a "verdade" indiscutível e supostamente universal. Nós, seres humanos, gostamos de ter essas crenças para orientar os nossos pensamentos e justificar as nossas ações, mesmo que nem sempre se possam aplicar e correspondam a verdades…
Uma certa antipatia para com a nossa própria civilização de raiz europeia e "judaico-cristã", se bem que plenamente justificada em certos aspetos, levou a extremos ideológicos que tocam o absurdo e que incluem a própria "diabolização" do Homem como espécie. Se calhar, todos já ouviram frases usadas entre os mais fanáticos adeptos dos direitos dos animais, como "quanto mais conheço as pessoas mais gosto dos animais". É em parte pelo crescimento desta forma de pensar que se vão desenvolvendo os movimentos de proteção animal, que muitas vezes aparecem confundidos com os movimentos para proteção da natureza e da vida selvagem, que serão em princípio de raiz menos ideológica e mais científica.
Todo este "endeusamento" dos povos de menor desenvolvimento tecnológico nasce de alguma consciência que a nossa sociedade, exageradamente materialista, tem tratado de modo muito pouco digno e justo os mais fracos, sejam os povos que escravizou, explorou ou mesmo levou à extinção completa, sejam os mais fracos da nossa própria sociedade, como as mulheres, os velhos, as crianças, os mais pobres, e outros, sejam até as minorias religiosas, sexuais, étnicas... Na verdade, todos os mais fracos têm sido muito mal tratados pelos grupos dominantes, o que cria na sociedade um movimento inverso no sentido de os beneficiar.
Pensemos agora nas consequências que esta forma de ver o mundo tem sobre a educação das crianças, que é como quem diz, sobre o nosso futuro enquanto povo. Parece-me claro que, do mesmo modo que se foi criando a ideia de inocência, pureza e bondade dos povos menos desenvolvidos tecnologicamente, se fez o mesmo às crianças, achando que é a sua aprendizagem da vida em sociedade que degrada o seu comportamento e conspurca o seu espírito. É afinal, no pensamento de muitos, o mundo dos adultos que estraga os meninos, porque eles são naturalmente verdadeiros, puros, generosos e bons.
Embora se meta pelos olhos dentro que nada disso é verdade, nós gostamos de acreditar nesse mito, talvez sobretudo pelo amor que nutrimos pelos descendentes de sangue, mas também por um certo instinto protetor dos pequenos humanos que os adultos mentalmente saudáveis geralmente têm. Mas as crianças são quase sempre egoístas, não gostando de partilhar, mentem com grande facilidade, quer por recriarem um mundo imaginário, quer para esconder os seus erros, acusando com frequência os outros das suas próprias falhas. Na verdade, são frequentemente muito cruéis para os seus pares mais fracos (em tempos, em grupos, como cães em torno de uma presa, humilhavam e mesmo sovavam os mais novos ou fracos), e ainda hoje fazem bullying das mais diversas formas. Mas nós, por uma questão de crença, não queremos ver isto e tentamos até muitas vezes demonstrar o contrário.
Na verdade, aquele mito em que gostamos de acreditar que diz que as crianças nascem boas e é a sociedade que as estraga, não tem qualquer fundamento, porque quem olhar o mundo com olhos lúcidos verá que se as crianças se transformam em homens justos, verdadeiros, leais e solidários, isso deve-se à educação e não à sua natureza. Por partirmos dessa ideia errónea da natural bondade das crianças, e pela nossa enorme e legítima vontade de as proteger, criamos um modelo de educação em que as crianças têm direitos sem deveres, em que a palavra de uma criança é mais credível que a do adulto, em que a autoridade dos mais velhos deixa de existir. Criamos um mundo aparentemente perfeito para as crianças, mas não as preparamos para o mundo dos adultos.
E é aqui que bate o ponto: a sobre proteção que damos aos nossos jovens, não os disciplinando, aparando todos os seus "golpes", atribuindo todos os direitos sem que sejam obrigados a assumir deveres, verdadeiros "reizinhos" na família, na escola e na sociedade em geral, vai criar adultos incapazes de esforço, egoístas, não solidários, indiferentes ao sofrimento alheio, pequenos tiranos que ao crescer tentarão ser tiranos de verdade. Não é preciso muita capacidade de antecipação para adivinhar que terão dificuldades em se integrar na disciplina do mundo do trabalho, terão dificuldade de suportar esforços, atividades que não sejam agradáveis e haverá, por isso, cada vez mais drogas, depressões e problemas de ansiedade…
É claro que só podemos esperar colher o que semeamos e não outra coisa. Se "semeamos" crianças habituadas a respeitar os adultos, a assumir responsabilidades e colaborar nos trabalhos domésticos ou outros no seio da família, a cumprir os seus deveres escolares, se os habituamos a partilhar dificuldades e ajudar os que deles necessitam, vamos "colher" adultos responsáveis e trabalhadores, solidários com a comunidade, ligados à família com respeito pelos mais velhos. Mas se, como temos andado a fazer, continuarmos a deixar os jovens com os direitos iguais aos dos adultos, mas sem deveres nenhuns, sem valorizar a aprendizagem e a escola, sem respeito pelos mais velhos, sem solidariedade com os mais fracos ou necessitados, estamos a criar uma geração de egoístas inadaptados à vida adulta, às responsabilidades do trabalho e da família, sem espírito de sacrifício, sem perseverança. Já vemos o princípio daquilo que fatalmente se agravará no futuro: os alunos não toleram nem acatam a disciplina na escola; os "nem, nem", aqueles que nem estudam nem trabalham, e que continuam a viver à conta dos pais, agarrados ao telemóvel, deitando-se de madrugada e levantando-se com o sol alto, são cada vez mais; as depressões juvenis, por clara incapacidade de viver com as contrariedades do mundo real, são cada vez mais comuns. E muitos jovens afinal não são mais felizes que os de outros tempos e, sobretudo, não se transformam em adultos mais realizados e capazes de triunfar na vida.
Já o tenho dito, e repito-o as vezes que for necessário: talvez seja melhor repensar o que andamos a fazer.



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Data: 27/06/2025
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