10h08 - quinta, 26/09/2024
Patriotismo
António Martins Quaresma
Li algures uma declaração atribuída ao escritor António Lobo Antunes: "A ideia de patriotismo não é muito forte em mim. O meu país é o país de Chekhov, Beethoven, Velasquez escritores de que gosto, pintores e artistas que admiro". Afirmação que me fez lembrar uma outra, muito conhecida, de Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Bernardo Soares: "A minha pátria é a língua portuguesa", citando, a propósito, exemplos da excelência linguística/literária como Fialho e Vieira. Ambas as asserções, foram, naturalmente, proferidas em contextos diferentes e até em estados de alma distintos. Mas ambas relevam uma disposição oposta ao patriotismo nacionalista, militarista e façanhudo.
Eu, que não me comparo, nem de perto, nem de longe, a Lobo Antunes ou a Pessoa, consigo compreendê-los nesta questão e, de algum modo, participar nas suas inquietações e escolhas. Nunca tendo sido um nacionalista, é verdade que, em tempos, tive uma posição mais alvoraçada em relação à "honra" nacional e à defesa do solo pátrio, apesar de não ter conhecido qualquer ameaça militar sobre o país. No fundo, fruto do clima nacionalista em que vivia.
A minha experiência de vida tem variado e isso tem determinado variações da minha posição sobre o assunto. Desde os tempos em que o Estado português manteve uma guerra de baixa densidade em Africa (década de 1960 e início da de 1970), para a qual toda a minha geração foi mobilizada, até aos dias de hoje, muita coisa mudou. Quando ainda era jovem, passei de um estado de inconsciência para um de exasperação relativamente à política portuguesa em África e ao papel das forças armadas nessa política. Depois, com a revolução do 25 de Abril, houve como que a reabilitação, a meus olhos, da imagem das forças armadas e do seu papel. Hoje, mais velho, vejo um Estado português e uma classe castrense completamente capturados pelo bloco internacional hegemónico, agressivo, belicista, sem que seja muito claro que os interesses deste convêm a Portugal. Parece-me, até, que qualquer pessoa que não esteja modelada pela intensa propaganda que corre nos media ou não tenha prévias e drásticas posições político-ideológicas, dificilmente encontra racionalidade no atual panorama de afrontamento belicoso, sobretudo promovido pela potência dominante e seus aliados. E, neste caso, é, até, normal que um português possa identificar-se mais facilmente, por exemplo, com um determinado político (ou política e estou a lembrar-me de uma alemã) estrangeiro do que com qualquer conhecido político português.
Claro que me conto entre os cerca de 10 milhões de pessoas que vivem neste território, chamado Portugal, falando a mesma língua (enfim, hoje com a concorrência da língua dos poderosos deste mundo: o inglês) e compartilhando, lato sensu, o mesmo universo sociocultural. Não obstante a distância e até a oposição que possa sentir relativamente a grande parte dos meus conterrâneos e às ações dos órgãos do poder político, subsiste sempre um lastro, uma espécie de determinismo, misto de geografia e história, um certo sentimento de pertença, que alimenta uma solidariedade, mais ou menos instintiva, com o povo em que me integro.
Mas se existe uma base afetiva e racional para uma atitude "patriótica", e na ausência de qualquer agressão ao país, então é natural que essa atitude se volte para valores positivos e que o culto nacionalista da Pátria, sempre com alguma carga negativa, se converta em culto, obviamente internacionalista, de valores literários, artísticos, científicos ou morais.
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