16h02 - quinta, 20/02/2025
Isto anda tudo ligado
Fernando Almeida
Quando se fala de fenómenos que ocorrem na natureza, costumo dizer que tudo anda ligado. Tal como numa teia de aranha, sabemos que ao tocar num dos seus fios em toda a teia se sentirá, também as ações que produzimos sobre a natureza podem produzir de forma indireta consequências à partida insuspeitadas. Quando pensamos em cheias e no aumento da gravidade das inundações, não imaginamos que em parte isso se possa relacionar com um desparasitante que damos ao gado. No entanto alguns desparasitantes matam os escaravelhos que enterram as fezes dos animais. Sem estes animais, diminuem as populações de minhocas e outros animais do solo, e tudo junto tem como consequência diminuição da permeabilidade dos solos e também da sua capacidade de reter água. E quem diria que, quando chove, a água se infiltra menos e escorre mais à superfície, o que pode agravar as cheias dos rios, porque damos esses desparasitantes ao gado!
Mas, evidentemente, os solos não estão mais impermeáveis apenas pela redução do número de escaravelhos, mas também pelo seu empobrecimento na microfauna, pela redução da quantidade de matéria orgânica, pela compactação provocada por máquinas pesadas, pela perda de cobertura vegetal, etc., etc.. Este exemplo serve para ilustrar a forma como geralmente olho para o mundo: os fenómenos que ocorrem à superfície do planeta normalmente não são simples, mas antes complexos, e, por outro lado, podem estar relacionados com fatores em relação aos quais, numa observação superficial, em nada dependem.
Estes princípios que guiam geralmente o meu olhar para os fenómenos naturais são, em meu entender, igualmente válidos para a generalidade das atividades humanas. Por isso, normalmente não aceito as explicações muito simples e diretas para os factos da vida dos homens e das sociedades. Hoje vou falar-vos da decadência acelerada da aprendizagem dos alunos na escola, evidência que à boca pequena todos os agentes da educação comentam, mas que ninguém assume formalmente. Talvez seja falta de coragem ou apenas comodismo.
Ao rever trabalhos que os meus alunos fizeram há cerca de trinta anos na Escola Secundária de Odemira, vejo como o perfil dos alunos mudou neste intervalo de tempo. Muitos desses trabalhos a que me refiro teriam hoje qualidade para ser apresentados na universidade em qualquer curso de Geografia. No entanto, à época, não os considerei excecionais, mas apenas bons ou muito bons. Outro facto relevante e significativo acontece quando no ensino secundário se procura indagar sobre o conhecimento que era suposto os alunos terem adquirido ao longo dos estudos em anos anteriores: sistematicamente os alunos não sabem, frequentemente dizem nunca ter ouvido falar dos assuntos em causa ou, na melhor das hipóteses, têm uma ideia vaga e geralmente imprecisa sobre conhecimentos que deveriam estar solidamente adquiridos. Dizem com frequência que "isso já foi matéria do ano passado" ou algo semelhante, como quem diz "já não tenho que saber isso, porque é passado". De facto, na atualidade o conhecimento raramente é acumulado por cada aluno, juntando o que aprendem hoje ao que aprenderam ontem, mas antes guardado como memória temporária até que seja objeto de apreciação em provas escritas, mas logo descartado. E assim muito pouco do que se aprende fica para a vida, sendo, pelo contrário, quase tudo perdido a curto prazo. Por estranho que possa parecer, entre os muitos fatores responsáveis por esta realidade incontornável está, indiretamente, a existência de baixos salários.
Na sociedade atual, os baixos salários obrigam ambos os membros dos casais a trabalhar, porque na maioria dos casos o ordenado de um deles não permite cobrir todas as despesas de uma família, mesmo que pequena. Por isso se incentivou ao longo dos anos a mulher a trabalhar fora de casa, dando-lhe a entender que daí advinha a sua "libertação e independência" (quando na verdade em muitos casos resultou apenas mais trabalho e pior qualidade de vida e, logo, mais servidão). Numa sociedade em que, por motivos diversos, a família alargada tradicional deu lugar à família nuclear, se pai e mãe estão a trabalhar, é necessário que os filhos estejam ocupados de alguma maneira. Os tempos em que os jovens não tinham aulas, mas também não tinham os pais em casa, deram muito mau resultado, como se lembrarão os mais velhos, com a formação de gangues de adolescentes, "arrastões" nas praias e nos comboios, vandalismo, carros de pneus furados ou incendiados sem motivo aparente, etc..
Por isso se viu que era necessário manter os rapazes e raparigas ocupados. Numa primeira fase, desenvolveram-se as instituições de "tempos livres" (OTL's ou ATL's), privados, mas isso era mais uma despesa que nem todas as famílias podiam suportar, pelo que se implementou a ideia na própria escola, porque na verdade o que se pretendia era manter os jovens ocupados para que os pais pudessem trabalhar. Outra forma de os manter ocupados foi ampliar os horários dos alunos pelo acréscimo de disciplinas e pelo aumento da carga horária de cada uma. Quando eu era estudante havia aulas de manhã, ou de tarde, e pouco mais. Quem tinha aulas de manhã tinha as tardes quase sempre livres, para estudar, fazer os seus deveres ou simplesmente brincar, aprender outras coisas, namorar
Todos nós sabemos que o aprender, seja lá o que for, é desgastante se for levado a sério, e também sabemos que há um "limite de saturação" na nossa capacidade de aprender. Nos primeiros minutos em que estamos atentos a capacidade é máxima, mas com o passar do tempo ela vai-se reduzindo até que já nada conseguimos compreender ou reter. Qual será a capacidade de um aluno aprender depois de seis, sete ou mesmo mais horas de aulas?
Ora hoje os alunos do ensino básico e secundário têm muitas horas diárias de aulas, o que evidentemente cria saturação, baixo rendimento na aprendizagem e na retenção de conhecimento, indisciplina e tudo o que é indesejável para a formação dos alunos. Ou seja, os baixos salários e o sobre trabalho dos pais obrigam a horários longos das escolas, o que leva à saturação dos alunos, o que finalmente ajuda a criar um ambiente de indisciplina e desconcentração, o que, por último, impede a formação de conhecimento bem estruturado e perene nos alunos. E desengane-se quem pensa que por ter mais horas de aulas se aprende mais, porque por vezes acontece exatamente o contrário.
Mas, evidentemente, não só a carga horária excessiva é responsável por esta situação de conhecimento efémero. Acrescem para explicar o fenómeno outros fatores, como a desvalorização do saber por parte das famílias e sociedade no geral, a forma desrespeitosa como sucessivos governos e ministros trataram a escola e os professores, os programas obsoletos, os telemóveis, e se bem calhar os aditivos alimentares ou outas coisas que comemos que cada vez criam nos alunos mais dificuldades de concentração. Na verdade, quem pensar bem, verá que isto anda tudo ligado.
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