12h07 - quinta, 03/09/2020
Liberdade Sobral
António Martins Quaresma
Ou D. Liberdade, como geralmente era tratada, nasceu em Ribeira do Seissal de Baixo, no concelho de Odemira, e faleceu recentemente, com 86 anos de idade. Artista plástica de cunho popular, de tardia vocação, era conhecida sobretudo no concelho, mas a sua obra obteve divulgação, nomeadamente através da FACECO (Feira Económica e Cultural do Concelho de Odemira), onde várias vezes expôs as suas esculturas. Algumas delas foram, inclusive, adquiridas por apreciadores de fora.
A genuinidade do seu trabalho artístico é indissociável da sua história de vida. Nascida e criada em ambiente rural, desde muito cedo começou a participar nos trabalhos do campo. Como aconteceu a muitas crianças da sua idade, nunca foi à escola. Mãe de uma prole numerosa de sete filhos, a sua vida era dividida entre a lida da casa e o trabalho no campo. Numa altura em que guardava gado, chegou a fazer poesia, de que o Município publicou um livro de versos (2001).
Tenho com D. Liberdade, que mal conheci pessoalmente, um problema de má-consciência. Há já largos anos, quando pela primeira vez vi uma escultura, em massa de cimento, da sua autoria o conhecido "Damião", colocado no jardim, que por isso tomou o nome de Jardim Damiano , confesso que não fiquei impressionado quanto à densidade artística da sua interpretação da figura do xadrezista odemirense, representado, a meu simplista ver, anacronicamente, de casaca e calções e a cruz de Cristo ao peito.
Hoje reconheço que a falha era minha, não dela, devida decerto à minha escassa sensibilidade e competência para a apreciar a sua arte. Recordo o contexto da feitura desta peça: tratava-se da revelação da figura histórica de Damião, na vila de Odemira, pela mão de Deodato Santos, também ele artista, que, enquanto professor e animador cultural da Câmara, organizou, a propósito, vários eventos nesta vila.
"Descobri" D. Liberdade, principalmente, quando Ana Tendeiro, que sempre me falava dela com entusiasmo, me mostrou algumas peças da sua autoria, pertencentes à colecção que possui. Apercebi-me, então, de quão incorrecta estava a minha primeira impressão (por esta e por outras, habituei-me e desconfiar das minhas primeiras impressões).
Os bichos, os seres híbridos, as figuras humanas, o uso de cores vivas na pintura das peças, tudo isso revelava agora aos meus olhos o rico universo criativo de uma artista, que recebia a inspiração da natureza que a rodeava, mas que imprimia à sua obra uma feição muito peculiar.
Sem erudição teórica, mas com uma fecunda inteligência estética, de que emana criatividade, fantasia e humor, habituou-se a manipular com mestria os materiais, desde o cimento, o único material moldável de que inicialmente podia dispor, ao barro a que depois teve acesso.
Liberdade Sobral foi uma mulher excepcional, como artista e como pessoa.
Ela venceu obstáculos, rompeu com preconceitos e, enquanto realizava as múltiplas tarefas diárias da casa, foi dando forma material aos sonhos. Disse-nos agora adeus, mas deixou amável lembrança aos que a conheciam e uma obra de ceramista e escultora a todos quantos se interessam pela arte.
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